Como foi a minha experiência trabalhando no Governo Federal: Desafios e Desconexões

Olá! <3

Antes de você ler, gostaria de deixar claro que este relato destina-se principalmente àquelas pessoas que, tal como eu um dia, desconhecem as nuances da máquina governamental. Ao compartilhar minha experiência, busco não apenas compartilhar meus sentimentos a respeito das dinâmicas de trabalho dentro de um ambiente da gestão pública, com muita influência político partidária, mas também proporcionar um olhar singular sobre como podemos escolher nossas batalhas sociais e profissionais de uma forma que respeitemos os nossos limites de saúde mental e éticos.

Receber um convite para assumir um cargo no governo federal, em uma gestão do Lula, foi um dos sentimentos mais incríveis que eu já senti em toda minha vida. Parecia que eu iria devolver um pouquinho tudo que eu recebi da democracia brasileira, a minha ascensão social, o acesso à educação superior e as conquistas coletivas da minha comunidade.

Minha relação com Brasília

Minha família chegou em Brasília na década de 1960, e com o passar do tempo sempre foram ficando afastados do centro, primeiro na Campanha de Erradicação das Invasões (CEI), que culminou na criação da Ceilândia, e nos anos 1980 foram para um pouco mais distante, Cidade Ocidental em Goiás. Essas cidades chamadas do entorno de Brasília que ficam nas bordas do distrito federal sempre sofreram com um esquecimento do Estado e muita violência.

Eu nasci em 1993, e cresci com pessoas próximas acessando o mercado de trabalho em Brasília geralmente dentro das copas, servindo às autoridades. Assim que os anos 2000 foram chegando as coisas melhoraram muito, vários familiares passando em concursos públicos, os salários aumentando e muitas promessas de um futuro com perspectiva para as pessoas jovens. E isso se consolidou, principalmente com as políticas do governo do PT com programas de acesso à educação como ProUni, SISU e os institutos federais. Eu mesmo me utilizei de dois desses programas para a minha formação.

Minha vida sempre foi distante da influência dos órgãos públicos e dos poderes impostas fisicamente na estrutura da cidade. Por isso, após me formar em Ciência da Computação fui fazer uma carreira na iniciativa privada e no terceiro setor. A minha desconexão com a cidade era muito grande e logo após concluir a minha graduação eu mudei de estado.

Minha aproximação com pautas sociais

Principalmente durante o governo Dilma, os avanços nas políticas de governo aberto atravessarem minha carreira e meu ativismo no mundo da tecnologia, onde eu já militava pela causa de software livre, sobretudo na comunidade Python. A implementação da Lei de Acesso à Informação, a fundação da Open Government Partnership (OGP), com o Brasil como país fundador em 2011, trouxeram a pauta de dados abertos para o centro das nossas discussões. À minha volta surgiam ONGs e projetos que iam ganhando força na sociedade como a Operação Serenata de Amor, Open Knowledge Brasil (OKBR), Fiquem Sabendo e muitas outras que abriram um universo de possibilidades da união de tecnopolítica com participação social direta.

Depois do golpe, obviamente o fomento do governo a transparência e participação social desapareceram, e dentro dessas organizações nós fomos para um caminho de influenciar nos planos de governo aberto e tentar incidir em minimizar os retrocessos.

Como eu cheguei no governo

Nós conseguimos criar muitas redes de pessoas importantes para inovação cívica e formação profissional dentro da Python Brasil e na OKBR, como a Rede de pessoas embaixadoras de inovação cívica. Além disso,essas vivências na diretoria da Associação Python Brasil e trabalhando diretamente com inovação cívica na OKBR me aproximaram de muitas pessoas vocacionadas à gestão pública.

Em virtude disso, a Laila Bellix que fazia parte do Conselho da OKBR juntamente comigo foi convidada para ser Diretora de Participação Digital e Comunicação em Rede na Secretaria Geral da Presidência. Na sequência a Laila me fez um contato para pensarmos em um nome para a Coordenação de Participação Digital, imediatamente eu achei que era uma grande oportunidade de experimentar um caminho mais próximo de construção de políticas públicas e até mesmo uma trajetória partidária.

Ter visto a democracia brasileira vencer o fascismo, com a vitória do Lula nas eleições de 2022, e depois ser convidado para compor o governo foi algo muito raro e eu sempre serei extremamente grato às pessoas que me abriram essa oportunidade. Pois sempre existiu em mim um sonho de participar de projetos estruturantes de impacto social.

Desafios

Trabalhar em um novo governo que está reestruturando tudo é muito dolorido, principalmente depois de anos de desmontes de políticas, e com um orçamento que era herança da gestão anterior. Tudo tinha que ser feito rápido dentro de um ambiente onde as construções de confiança ainda não são sólidas e existem ainda muitas disputas em vários níveis. Desde cargos, métodos e retóricas sobre como fazer as coisas. Ainda com uma presença forte da polarização no Brasil, onde os lados não dialogam e tendem sempre a uma postura voltada a tensão do debate e “lacração” dos dois lados.

Na nossa Secretaria o objetivo era construir um mecanismo de participação digital que permitisse ao governo elaborar um Plano Plurianual (PPA) de forma participativa, ou seja, a população teria um canal para sugerir e priorizar propostas e programas para o governo federal direcionar recursos nos próximos quatro anos.

Quando eu fui nomeado, a plataforma já estava milagrosamente no ar, depois de dois meses intensos de trabalho de uma equipe com a maior parte de pessoas voluntárias e um arranjo político com o Ministério da Gestão e Inovação, Dataprev e o laboratório LAPPIS da UnB. Muitas pessoas trabalhavam de uma forma precária para o mínimo viável ser concluído, pois a estrutura do ministério ainda estava se formando e não existia um time. De forma heróica, Laila, junto de várias outras pessoas generosas, o projeto saiu, usando uma adaptação brasileira do Decidim (Uma plataforma open source para desenvolvimento de processos participativos digitais idealizada em Barcelona). Pronto! Em impressionantes dois meses o governo emplacou o uso de um sistema de código aberto e colaborativo, agora era necessário refatorar as implementações para poder a estrutura suportar o alto volume de acessos e proposições, e esse foi o exato momento em que eu entrei.

Tudo era muito difícil, a pressão em cada micro decisão, os conflitos que geralmente culminam em cenas de assédio e a burocracia importante e natural para tudo ser formalizado que deixavam as coisas mais lentas do que nós podíamos esperar. Desde contratações, acordos de cooperação técnica e afins.

Por fim, a participação social foi muito grande e passamos de 1.4 milhões de cadastros de pessoas brasileiras na plataforma, usando a solução do GovBR como garantia de acessos não robotizados. Várias pessoas de outros países citam essa experiência como o maior processo participativo digital que já existiu, em números quantitativos. Para quem quiser aprofundar, aqui está a memória do PPA.

Após esse processo inicial, o time foi direcionando os esforços de mitigar débitos técnicos deixados pelos dos momentos de intensidade e em escalar o sistema para outros processos participativos, como conferências nacionais e consultas públicas.

Desconexões

Pouco depois da entrega enorme do PPA a Laila decidiu sair do governo, e posteriormente o Danilo Castro, que era o meu par liderando a frente de Comunicação em Rede. A partir daí se iniciou um processo pessoal de eu entender o quanto seria importante eu continuar ou não. Confesso que nessa altura eu já tinha desistido completamente de qualquer aventura partidária e da vida política. O meu foco era entender como não ser impulsivo e procurar entender se existia algum caminho para eu me encaixar na estrutura que a cada dia parecia mais incompatível.

Minha trajetória no governo federal me fez refletir profundamente sobre a dinâmica de trabalho. Tenho uma visão construtivista, onde o coletivismo é central, enquanto percebo que o ecossistema político é muito personalista e autocentrado, onde a disputa é central nas relações e isso consome toda a energia de colaboração e criatividade que tem nas pessoas. Eu até falei algumas vezes que deveria ter uma espécie de onboarding para as pessoas entenderem que no poder executivo é necessário gestão próxima dos servidores, para remover um pouco essa cultura por vezes parlamentar/partidária.

O alto escalão do governo é um espaço muito MUITO difícil para minorias. As mulheres, por exemplo, sofrem misoginia constantemente, desde atitudes sutis nas entrelinhas de reuniões até frases mais explícitas de pessoas descuidadas, onde na maioria das vezes são homens brancos de mais idade, que são a maior população nesses espaços.

Esses dias a Janja fez um post importante falando sobre uma sala de amamentação dentro da estrutura do Palácio. Eu não consegui celebrar, pois uma pessoa que solicitou esse tipo de recurso, passou meses dirigindo quase 100 km por dia para poder amamentar sua filha em momentos diferentes do dia, porque a gestão dos ministérios não priorizou as mães. E se perceberem o post da Janja em 2024 tem um ano de atraso. No geral, a percepção é de que as pessoas nunca são priorizadas nas suas necessidades. Na esplanada é muito comum as pessoas falarem que o governo é uma “Máquina de moer gente”, vocês não acham isso uma gracinha? :)

Eu fiquei perplexo de não existir mecanismos acessíveis para denunciar assédios, são informações difíceis de encontrar e quando existem há um melindre enorme em utilizá-las. É inacreditável a nata do capitalismo, onde transitam os fundos de investimento e as startups da Faria Lima terem construído em várias empresas espaços para ouvir assédios e acolher relatos e o governo federal falhar nisso com as pessoas que estão colocando em prática as políticas públicas. Isso é curioso porque dentro dos movimentos sociais estão os atores que pressionaram o mercado e a sociedade a avançarem na pauta da cultura do cuidado e saúde mental, inclusive provando que isso entrega mais produtividade e lucro, todavia, muitas das mesmas pessoas da academia e movimentos chegam dentro da estrutura de um governo para sofrerem com a distância que a estrutura da política está de construir um ambiente seguro de trabalho. Isso é uma das maiores contradições que eu percebi.

As contradições de discurso

Durante as eleições o presidente Lula usou e abusou do passado incrível de avanços na cultura de dados abertos e participação social, que eu mesmo já citei aqui no texto. Mas na prática o que eu constatei é que existe muita resistência para continuar avançando na pauta e essa resistência não vem do centrão.

Existe uma resistência enorme no centro do governo de participar de discussões que envolvem a abertura de dados de grandes obras do PAC, ou mesmo trazer processos participativos para essas decisões. O próprio PPA Participativo pode ter sido um esforço que não irá garantir que a população tenha influência sobre o orçamento. Assistir tudo isso de dentro do governo foi gerando um sentimento de frustração insuportável.

A minha vontade de sair cresceu nos últimos meses muito em um sentimento de ter mais impacto no terceiro setor, pressionando as autoridades de uma forma mais direta e sem conflito, para que sigam seus discursos de campanha, assegurando que suas palavras não se tornem vazias no futuro.

Tenho boas notícias

Nessa trajetória eu percebi que não tenho compatibilidade com esse ambiente, porém tive a sorte de perceber que existem muitas pessoas incríveis transformando os espaços. Desde as mulheres corajosas que disputam dentro do patriarcado do PT, até servidores públicos de carreira extremamente comprometidos com o Brasil. São muitas pessoas qualificadas e inteligentes que trabalham de forma ética e comprometida com as melhores práticas para servirem a população.

O Ministério da Gestão e Inovação possui um trabalho sério para aprimorar os serviços digitais do governo e por lá eu encontrei pessoas tão preparadas para enfrentar níveis de escala como eu conheço de pessoas que trabalham em big techs por aí, imaginem construir produtos como o GovBR que atendem por volta de 150 milhões de pessoas usuárias únicas. Outro cenário muito legal é que a CGU continua fazendo um trabalho primoroso na promoção da integridade no serviço público e nos avanços de uma política de governo aberto.

Apesar de parte do público masculino idoso, que apresenta alguns conflitos geracionais de como pensar o mundo (com exceções), existem muitas pessoas maravilhosas que vieram para Brasília construir novas formas de pensar o Brasil e possuem verdadeiramente a vontade de se reconstruírem para serem cada vez menos machistas, menos preconceituosos e mais afetuosos.

Considerações finais

Tem algumas coisas importantes ainda a serem ditas:

  • Eu votaria no Lula de novo e de novo e ainda acho que apesar das dificuldades que eu percebi ainda é a melhor saída que temos para repararmos a nossa democracia. (fazuele)
  • Trabalhar com o volume do governo federal foi a maior experiência de desenvolvimento de software que eu já participei.
  • Brasília é uma cidade legal, e tem gente sendo feliz aqui. Porém pode não ser um lugar pra mim e está tudo bem!
  • Agora eu posso dizer com propriedade, pois passei por todos os setores da economia. As pessoas sempre são mais importantes no processo de construção de produtos, políticas ou qualquer coisa. Cuidem uns dos outros.

Que o governo tenha êxito nos projetos e que o Brasil seja realmente um lugar de união e reconstrução. <3